Os bacilos Gram-negativos multirresistentes são agentes etiológicos comuns de infecções associadas aos cuidados à saúde. O isolamento desses em ambientes hospitalares, casas de repouso, e em cenários na comunidade (ex. pacientes ambulatoriais, indivíduos hígidos, animais, e produtos alimentícios) também já foi descrito1,4. A detecção precisa dos mecanismos de resistência contribui significativamente na condução terapêutica e no prognóstico dos pacientes 2,3. Abaixo, apontamos os principais aspectos relacionados aos mecanismos de multirresistência e detecção laboratorial, com foco em enterobactérias1,5.
Beta-lactamase de espectro estendido (ESBL):
Consiste em enzima que confere resistência à maioria dos beta-lactâmicos, incluindo penicilinas, cefalosporinas e ao aztreonam. Comumente, as infecções pelos microrganismos produtores de ESBL apresentam um pior prognóstico clínico. A maior parte das ESBL pertence à classe A de Ambler e apresenta inibição por inibidores de β-lactamase (ácido clavulânico, sulbactam e tazobactam) e por diazabiciclooctanonas (avibactam). As ESBL têm sido descritas exclusivamente em bactérias Gram-negativas, primeiramente em Klebsiella pneumoniae, Klebsiella oxytoca e Escherichia coli, mas também em Acinetobacter, Burkholderia, Citrobacter, Enterobacter, Morganella, Proteus, Pseudomonas, Salmonella, Serratia e Shigella spp. Os principais tipos de ESBL descritos são:
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TEM: Beta-lactamases mediadas por plasmídeo que hidrolisam penicilinas e cefalosporinas de espectro estreito, como cefazolina e cefalotina. No entanto, essas beta-lactamases não são capazes de hidrolisar cefalosporinas de terceira (Cefotaxima, ceftazidima e ceftriaxona) e quarta geração (Cefepima). São comuns em Enterobacterales, Pseudomonas aeruginosa, Haemophilus influenzae e Neisseria gonorrhoeae. Dentre os mais de 200 tipos já descritos, nem todos são ESBL. As TEM-1 e TEM-2 foram as primeiramente descritas, mas TEM-10, TEM-12, e TEM-26 consistem nos tipos mais frequentes descritos até hoje em todo o mundo;
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SHV: Dentre os mais de 190 tipos descritos, SHV-2, SHV-5, SHV-7 e SHV-12 estão entre os mais comuns descritos até o momento no mundo. Conforme dito, consideramos ESBL as enzimas que conferem resistência à maioria dos beta-lactâmicos, incluindo penicilinas e cefalosporinas. Assim, as beta-lactamases que não exibem essa propriedade, não são consideradas ESBL. Nem todas as SHV são ESBL, mas aquelas com esse perfil consistem em beta-lactamases que hidrolisam as cefalosporinas de terceira geração adicionalmente às propriedades acima descritas para TEM;
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CTX-M: Mecanismo de resistência enzimático mais frequente dentre os descritos, são caracterizadas por genes plasmidiais derivados originalmente de genes cromossômicos de espécies de Kluyvera. Apresentam maior atividade contra cefalosporinas de terceira e quarta gerações do que os tipos citados acima (TEM, SHV). Já foram descritas mais de 160 tipos, e são encontradas em enterobactérias como E. coli, K. pneumoniae e Salmonella spp. ;
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OXA: Nem todas consistem em ESBL, mas aquelas que apresentam essas características são mediadas por plasmídeos que degradam também oxacilina e penicilinas anti-estafilocócicas. Algumas OXA também apresentam atividade de carbapenemase;
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Outras famílias de ESBL mediadas por plasmídeos: As enzimas PER, VEB e GES já descritas em P. aeruginosa e degradam também cefalosporinas e monobactâmicos; enquanto BES, SFO e TLA foram descritas em enterobactérias.
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Detecção laboratorial das ESBL
É baseada no padrão de resistência à cefalosporina de terceira e quarta gerações, e no potencial da ação do inibidor de beta-lactamase. As tipo AmpC são resistentes à inibição por clavulanato e comumente resistentes à cefoxitina, cefotetan e cefmetazol, diferentemente das ESBL. As tipo OXA são fracamente inibidas por clavulanato. Os métodos tradicionais para a detecção incluem:
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Testes de triagem:
- Diluição em caldo ou ágar com concentração mínima inibitória (CIM) > 1 mg/L para cefotaxima, ceftriaxona, ceftazidima ou cefpodoxima.
- Método de disco-difusão com halo de inibição < 21 mm para cefotaxima (5 ug) ou cefpodoxima (10 ug), < 23 mm para ceftriaxona (30 ug), ou < 22 mm para ceftazidima (10 ug).
- Sistemas semi-automatizados (Vitek, MicroScan, and BD Diagnostics).
- Teste do disco combinado (TDC).
- Teste de sinergismo do duplo disco (TSDD, cefalosporina de terceira ou quarta geração, próximo a um disco de clavulanato).
- Teste de gradiente para ESBL (Etest ESBL com clavulanato em uma extremidade, em um gradiente de cefalosporina).
- Teste de microdiluição em caldo com cefalosporina em diferentes concentrações e concentração fixa de clavulanato.
- Testes bioquímicos colorimétricos (ESBL NDP, 𝜷-LACTA).
- Métodos semi-automatizados: VITEK 2, Phoenix e Walkaway.
- Sequenciamento genômico ou microarranjo de DNA.
Note que para confirmar ESBL em cepas que expressam alto nível de β-lactamases AmpC, é recomendada a realização de teste com cefepima, a qual não é hidrolisada por β-lactamases AmpC. Outra possibilidade é o uso de cloxacilina, um inibidor de enzimas AmpC.
AmpC beta-lactamase
Consiste em β-lactamase da classe C (serina) de Ambler com características de cefalosporinases que hidrolisam penicilinas, cefalosporinas (incluindo a terceira geração, porém geralmente não degradam os compostos de quarta geração) e também os monobactâmicos. Adicionalmente, as enzimas do tipo AmpC são fracamente inibidas pelos inibidores de ESBL clássicos, como o ácido clavulânico. Já foram descritas em grupos de espécies de Enterobacter (MIR, ACT), C. freundii (CMY-2 like LAT, FCE), M. morganii (DHA), Hafnia alvei (ACC), Aeromonas (CMY-1-like, FOX, MOX) e o grupo Acinetobacter baumannii (ABA). As principais produtoras de AmpCs adquiridas incluem E. coli, K. pneumoniae, K. oxytoca, Salmonella enterica e P. mirabilis.
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Detecção laboratorial de AmpC
A CIM de cefoxitina >8 mg/L (zona de inibição < 19 mm) associada à resistência fenotípica a ceftazidima e/ou cefotaxima (de acordo com os pontos de corte) atendem aos critérios fenotípicos para a produção de AmpC em E. coli, K. pneumoniae, P. mirabilis, Salmonella spp. e Shigella spp., apesar desta estratégia não detectar ACC-1, a qual não hidrolisa cefoxitina. A tipificação da AmpC pode ser caracterizada pela existência de sinergismo com cloxacilina e confirmada por estudos moleculares. É importante ressaltar que a resistência à cefoxitina pode adicionalmente ser associada à deficiência de porinas sendo sugerida pela ausência de sinergismo com cloxacilina. Nos laboratórios que realizam testes com cefoxitina, a sensibilidade à cefepima associada à resistência à cefotaxima e/ou ceftazidima é outro indicador fenotípico de AmpC, embora com menor especificidade.
Carbapenemases
Consiste em b-lactamases que hidrolizam penicilinas e cefalosporinas na maioria dos casos, e, em vários graus, também de carbapenêmicos e monobactâmicos. São categorizadas na classificação de Amber de acordo com a homologia de aminoácidos em classes: A, C e D devido a resíduo de serina no sítio ativo, enquanto às da classe B necessitam de zinco para a atividade (metalo-beta-lactamases - MBL, que são inibidas por EDTA). A classe A inclui as enzimas SME (Serratia marcescens), NMC (não-metaloenzima carbapenemase), e IMI (imipenem-hidrólise), essas últimas descritas em cepas de Enterobacter. As carbapenemases plasmidiais incluem a originalmente descrita em Klebsiella pneumoniae (chamada KPC) e a de espectro estendido Guiana (GES), descrita em Pseudomonas aeruginosa e K. pneumoniae. É importante ressaltar que a resistência a aminoglicosídeos e fluoroquinolonas estão frequentemente presentes em cepas produtoras de carbapenemases.
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Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC): Enzima codificada por plasmídeo e já descrita em Escherichia coli, P. aeruginosa, Citrobacter, Salmonella, Serratia e Enterobacter spp. Outra enzima, BKC-1, já foi detectada em cepas K. pneumoniae no Brasil;
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Beta-lactamases de Classe B: Os tipos já descritos incluem IMP, VIM, GIM, SPM e SIM, em diferentes espécies como: Aeromonas hydrophila, Chryseobacterium spp, Stenotrophomonas maltophilia, Serratia spp. , Klebsiella spp. , Pseudomonas spp. , Escherichia spp. , Acinetobacter spp. , Citrobacter spp. e Enterobacter spp. A enzima denominada New Delhi metallo-beta-lactamase (NDM-1) também foi inicialmente descrita em K. pneumoniae e posteriormente em E. coli, Enterobacter cloacae e Acinetobacter, e em geral as cepas apresentam susceptibilidade apenas a colistina ou tigeciclina;
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Beta-lactamases de Classe D: Também chamadas OXA-type, pela hidrólise de oxacilina. Já foram descritas em Acinetobacter baumannii, K. pneumoniae, E. coli, e E. cloacae. Dentre os >100 tipos descritos, seis subgrupos apresentam graus variáveis de hidrólise de carbapenêmicos: OXA-23, OXA-24/OXA-40, OXA-48, OXA-58, OXA-143, and OXA-51.
- Detecção laboratorial - Testes fenotípicos:
- Triagem: Determinação da CIM (mg/L) >0,12 para meropenem e ertapenem ou método de difusão com discos de 10 ug de meropenem e ertapenem com diâmetro dos halos de < 28 e < 25 mm, respectivamente.
- Método de difusão com duplo disco (carbapenêmico e inibidor - disco combinado).
- Método de difusão com discos contendo carbapenêmico com ou sem inibidor.
- Teste Carba NP.
- Teste de gradiente E para a detecção de MBL.
- Método de inativação de carbapenêmico.
- Detecção de hidrólise de carbapenêmico por MALDI-TOF.
- Técnica de fluxo lateral - Anticorpos monoclonais para OXA-48-like.
Os inibidores incluem ácido borônico (inibe classe A), o ácido dipicolínico ou o EDTA (inibem classe B), e a cloxacilina (inibe AmpC). A ausência de sinergismo no teste de duplo disco, e a observação de resistência a alto nível de temocilina (CIM > 128 mg/L ou diâmetro de halo < 11 mm) é indicador fenotípico de produção de OXA-48. Em caso de sensibilidade à temocilina, sugere-se a ocorrência de ESBL associada a perda de porina.
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Detecção laboratorial - Testes genotípicos:
- Reação de polimerização em cadeia (PCR) para genes específicos, incluindo PCR multiplex e tempo real.
- Plataforma comerciais: BDMax, Biofire, Cepheid, GeneXPert e CheckPoints;
- Micro Arranjos de DNA.
- Sequenciamento de genes específicos.
Referências Bibliográficas:
1. BrCAST - Brazilian Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing. http://brcast.org.br. Acesso em 01 de fevereiro de 2023.
2. Bose P, Rangnekar A, Desikan P. NDM-beta-lactamase-1: Where do we stand? Indian J Med Res. 2022 Feb;155(2):243-252.
3. Bush K, Bradford PA. Interplay between β-lactamases and new β-lactamase inhibitors. Nat Rev Microbiol. 2019 May;17(5):295-306.
4. Tooke CL, Hinchliffe P, Bragginton EC, Colenso CK, Hirvonen VHA, Takebayashi Y, Spencer J. β-Lactamases and β-Lactamase Inhibitors in the 21st Century. J Mol Biol. 2019 Aug 23;431(18):3472-3500.
5. Wilson H, Török ME. Extended-spectrum β-lactamase-producing and carbapenemase-producing Enterobacteriaceae. Microb Genom. 2018 Jul;4(7):e000197.
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